Cuba - Percepções
(publicado originalmente no Jornal Hora H - Ijuí, Ano 9, n. 492, 7 mar. 2008. p. 6-7)
Lídia Inês Allebrandt
(professora Mestra em Educação, vinculada ao Departamento de Pedagogia da UNIJUÍ)
TECENDO PERCEPÇÕES, MEMÓRIAS E IMAGENS DE CUBA
Conhecer outras terras pode ser um prazer, uma aventura e a possibilidade de descobertas. Por isso temos que sair de casa abertos ao diferente, ao inusitado, às aprendizagens e ao diálogo. Sair sem pré-julgamento e sem a expectativa de que lá será como aqui. Perceber que as diferenças existem e que não são nem melhores nem piores, mas outras formas de organização possível. Sabemos que há várias formas de conhecer um país: lendo sobre ele, acompanhando notícias e análises, fazendo turismo, participando de um evento acadêmico ou fazendo uma imersão no cotidiano de uma família e da cidade. Bem, num primeiro momento, durante sete dias, optamos pela última possibilidade, depois pelas demais formas para conhecer, principalmente, Havana, a capital cubana. Conhecer Cuba, depois de 49 anos sob as ordens del comandante en Jefe, o revolucionário Fidel, considerado o último mito vivo da história, aquele que sobreviveu a 13 presidentes americanos, requer um olhar atento para a complexidade das relações sociais e a multiplicidade da realidade. Requer saber ouvir, compreender que não há uma verdade, mas verdades possíveis. Requer, acima de tudo, ouvir, ver e analisar criticamente vários aspectos.
No entanto, o objetivo deste relato é apenas trazer algumas percepções, memórias e imagens que, junto com outros educadores ijuienses (Vera Kaminski, Ruth Fricke, Antonio Corrente, Célia Atktinson e Lorena Cossetin) construímos durante os 14 dias que convivemos com parte do povo cubano. São observações fundadas no detalhe, no resíduo, no singular, incluem fragmentos de conversas, observações in locus, leituras de jornais e noticiários assistidos, que não revelam o pensar de todos os cubanos, mas alguns modos de ver e pensar as duas últimas semanas antes da renúncia de Fidel, que aconteceu dia 18 de fevereiro de 2008, bem como inferências e abduções após mais este acontecimento histórico.
A RENÚNCIA DE FIDEL E O DESENVOLVIMENTO DA ILHA
Como disseram alguns comentaristas brasileiros, Cuba, a maior ilha do Caribe, com mais de 11 milhões de habitantes, já foi colônia da Espanha, foi cassino dos Estados Unidos e foi satélite da ex-União Soviética e, agora, vive um novo momento: a renúncia de Fidel. Quando soubemos da notícia procuramos falar com a família cubana sobre este fato e a resposta foi: aqui está tudo tranqüilo. Pensamos, então: essa tranqüilidade vem do desejo de mudança e da certeza de que Fidel não abandonaria o seu povo. Vem de toda uma história de lutas, de tréguas, de confiança e da certeza de que a vida e a história mudam. Mas de onde podemos inferir isso? De falas de pessoas que diziam: Fidel está presente, só está impossibilitado fisicamente de acompanhar as várias atividades que o cargo lhe confere. Fidel cuida da política externa e Raul cuida da política interna. Falas que demonstram confiança, pois desde que assumiu o poder, Raul, que sempre esteve sob o comando de Fidel, desenvolveu projetos para melhorar, ainda mais, a vida do povo cubano. Percebemos que houve melhorias no transporte, na restauração de prédios históricos, na expansão do ensino superior. Há controle sim, pois é um país que vive sob o embargo econômico dos Estados Unidos, passa por dificuldades, mas mesmo assim nos últimos anos a economia cresceu 8% ao ano. Percebemos que o povo cubano praticou a ação de inventar. Isso ouvíamos diariamente: Nós inventamos. Constatamos que inventam mesmo e que são solidários. A economia avançou e o trabalho informal cresceu. Claro, isso não ocorre somente lá, aqui vemos muito disso, já que os sistemas são flexíveis e abrem brechas para novas formas de produção. Podemos pensar que o povo cubano gosta do jeito de Raul governar. Fidel, formado em direito, é o intelectual revolucionário que mobilizou o povo em prol de uma sociedade possível e teve de Raul e muitos outros companheiros confiança e garra para propor uma nova sociedade e mantê-la. Raul, irmão de FIDEL, 75 anos, é, atualmente, bem visto pelas pessoas e é homem de confiança de Fidel. Mas para o mundo, a renúncia de Fidel significou um novo marco: a disposição de mudar. Mais do que isso, penso que significou que Fidel reconheceu que a sociedade se transforma. Em seu discurso de renúncia ele citou Oscar Niemayer dizendo que temos que manter a coerência até o final. As notícias revelam que Fidel quer se manter como secretário do Partido, cargo extremamente importante, e que continuará tendo voz ativa, mas o fato de renunciar foi mais um dos tantos atos políticos que repercutiu no exterior e que esse gesto simbólico é capaz de abrir novas possibilidade para Cuba desenvolver-se.
EXPECTATIVAS DE NOVOS TEMPOS E MESMOS IDEAIS
Pensar que em Havana todos vivem do mesmo modo é um erro. Há diferenças e há mecanismos dentro do sistema que permitem isso. Pessoas que se destacam em determinadas áreas têm privilégios. Alguns recebem mais, têm carros e casas melhores. Outros podem usufruir de viagens e ter acesso à internet, hoje bastante restrita devido ao bloqueio americano que controla o sistema via satélite, cuja tecnologia é cara. Aliás, a postura americana tem contribuído para mostrar ao mundo que se o regime é diferente do seu não é aceitável. Tem servido para castigar quem ousa fazer diferente. Tem servido para perpetuar o poder de um país sobre outros. Mas Cuba sobreviveu a duras penas. Talvez por isso, muitos hoje não tenham melhores condições de vida. Todos têm educação, saúde e moradia. Mas o salário de 240, pago em moeda nacional, equivale a 10 CUC, ou seja, 10 dólares, e não possibilita que muitos adquiram outros bens para seu bem viver ou usufruam de passeios e outras atividades de lazer. Parece invenção, mas os cubanos estão proibidos de hospedar-se em hotéis do próprio país, sem licença especial. Os cubanos podem pagar transporte, livros, alimentação etc... com a moeda nacional, mas ela vale pouco. Andam de ônibus (la gua guá, de camello ou táxi coletivo. Por isso, inventam e buscam ganhar CUC. Com esta moeda de divisa, podem realizar alguns de seus sonhos e desejos. E por falar em desejos, percebemos o quanto anseiam pela liberdade de ir e vir. Amam seu país, mas querem conhecer outros lugares, conhecer outras pessoas. Sonham em conhecer o Gigante da América Latina (Brasil), adoram a música, o carnaval, as novelas, Paulo Freire, Frei Beto, acham as mulheres lindas, respeitam Lula.e reproduzem fala de Fidel que diz que Lula não pode fazer diferente aqui porque o nosso país é muito grande e que Fidel compreende isso.
O povo cubano é comunicativo, alegre e criativo, faz uma excelente música, é um dos maiores criadores de ritmos e lá só não estuda quem não quer realmente. Desde os círculos infantis até a universidade o ensino é gratuito. Claro, quem quer entrar, por exemplo, num curso de Odontologia, na universidade de Havana, precisa ter excelente conhecimento e passar nas provas de seleção. Aqueles que podem pagam professores particulares e ampliam as chances de ingresso. Mas se não passa pode fazer outra seleção ou escolher outros cursos. Cuba tem alguns dos melhores médicos do mundo, melhores atletas, melhores músicos, melhores dançarinos e artistas. Cuba é referência em saúde, educação e desporto e, em razão disso, as universidades cubanas recebem muitos estudantes do mundo inteiro, principalmente da América Latina. Muitos médicos cubanos estão prestando serviços em outros lugares. Muitas pessoas procuram os serviços médicos em Cuba, porém médicos particulares são raros. Até o presente momento, depois de formado os profissionais da saúde precisam trabalhar 10 anos em serviços comunitários. Essa é a sua contribuição pelo que recebeu desde a infância em termos de educação. Não reclamam disso, mas querem mais. Então, quem pensa diferente, correrá riscos? Montará sua clínica? Só o tempo dirá. Mas algo nos foi dito que mostra novas tendências: quero montar meu consultório. Posso perder o diploma, mas o que tenho aqui (na cabeça) ninguém pode tirar. É a força da juventude e da educação.
Posturas como essas revelam novos tempos, novas formas de ver a vida, novos desejos. Desejo de ver o país se desenvolver e desejo de poder contribuir de outras formas. Também o desejo de criar suas possibilidades, já que nem todos são iguais. Alguns jovens acreditam que o país deve se abrir para o capital externo. Não lutam contra o sistema vigente, mas sabem que como está não pode ficar. Defendem os ideais de desenvolvimento social igualitário, mas com mais liberdade e acesso as vantagens do consumismo capitalista. Será isto possível?
CULTURA E IDEAIS POLÍTICOS
Os cubanos lêem bastante. Vimos atendente de aeroporto falando de nossos intelectuais brasileiros, por exemplo, Darci Ribeiro. Outro taxista nos recomendando ler 100 horas com Fidel. Conversamos muitas horas, conhecendo como vivem, o que almejam e, também contando como se vive aqui no Brasil: terra das grandes diferenças sociais e econômicas.Tanto se lê que a XVII Feria Internacional del Libro de Cuba 2008, na Fortaleza de San Carlos de La Cabana, aconteceu num espaço de 2.959 metros quadrados de incitação à leitura, reunindo expositores de 31 países que representavam 297 editoras. É um acontecimento cultural extremamente significativo e atrai multidões. Conversando com uma senhora ela disse que guarda dinheiro para, todos os anos, comprar livros para sua filha, principalmente cubanos, pois os outros (estrangeiros) são muito caros (são vendidos em CUC). Encontramos muitas pessoas com sacolas cheias de livros. Muitas sentavam sob árvores ou nas sobras das pedras da fortaleza e liam seus livros. Palestras, homenagens, gastronomia e atrações culturais diversas compuseram o evento que faz circular o livro e promove a leitura e o conhecimento. Evento massivo e problema grande: falta de lixeiras para depositar as sobras de alimentação ou bebidas. Funcionários do governo limpavam os espaços. A explicação que construímos para tal fato é que faltam coletores para acondicionar os dejetos.
Algo que nos chamou a atenção foi referente aos canais de televisão disponíveis: nos bairros 4 canais e, nos hotéis, 14 canais. Canais selecionados de informação, cultura e educação. Já em relação ao acesso à internet há restrições. Cuba não dispõe de acesso às tecnologias de ponta que permitiriam amplo uso. Então, nas casas não há acesso à rede de internet ampla. Podem-se baixar livros de várias áreas do conhecimento, mas nem todos têm computadores adequados para isso. Alguns poucos, principalmente nas universidades e em determinados setores podem acessar a internet ampla. Nos hotéis acesso irrestrito à internet, porém até às 20 horas. O Correio é a lan house do povo e está sempre lotado.
O governo sabe manter suas idéias vivas. Palavras de ordem. Frases em muros. Imagens de Che em vários artigos, inclusive tatuagens no braço. Livros, músicas, monumentos, museus e outros objetos compõem os sinais, símbolos e signos que circulam em Cuba. A revolução se mantém viva na memória do povo. Na televisão e também nas conversas acompanhamos alguns pronunciamentos de jovens que estão engajados na política. As idéias fervilham entre eles. Isso é algo que sempre marcou Cuba, pois muitos dos movimentos saíram da Universidade de Havana, liderados pela FEU- Federação Estudantil Universitária. Fidel confia na juventude e, penso, ela sabe o que quer.
Enfim, Cuba tem um povo maravilhoso, uma história muito interessante, propostas de educação para todos, política cultural e valorização da música, artes e prédios históricos; aposta na formação desportiva e no lazer; tem excelentes profissionais e ações na área da saúde; áreas de turismo muito bem estruturadas e muito charme. Vale a pena conhecer e tirar suas próprias percepções.
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